Sapatilhas para pés nus e fortes, por Fernando Volpi
Diversas iniciativas de gestores culturais em todo o mundo têm evitado o desperdício de talentos pela falta de oportunidades, mas nem sempre sabem qual é ou onde está a oportunidade.
Empreendedores sociais movimentam fortunas, nem sempre confessáveis, aplicando sem tanta transparência em projetos – por sua vez, honestos – de inclusão.
Grandes empreiteiras lavam a égua nos convênios oficiais e tentam lavar a sujeira financiando generosamente e sem critérios, projetos sociais que priorizam taticamente periferias e a população excluída. Aliás, já escrevi sobre a ciranda das ONG e as intermediações sub-reptícias. O assunto aqui é outro.
Felizmente, há quem faz arte e promove inclusão com doação pessoal inspirada, contando apenas com os próprios recursos e com a adesão voluntária de solidários provedores. O exemplo mais recente disso vem de Canavieiras, na Bahia, da Escola de Ballet “Pliè” (significa "dobrar", a curvatura suave e contínua dos joelhos, a flexão dos joelhos para fora e com a volta realizada em linha reta), detonou o desonesto conceito histórico de que a dança clássica é elitista e excludente, ao abrir espaço para meninos e meninas pobres. Aliás, raros são os casos de bailarinos famosos egressos de famílias ricas.
A “Plié” identificou promissores talentos em alunos da rede municipal, numa prospecção cultural apoiada pelo Governo da Reconstrução através da Secretaria da Educação, cuja titular, Emilia Augusto, é bailarina. Foram selecionadas 30 crianças bolsistas que compõem o Projeto Allegro, formando um só corpo com os demais alunos pagantes de diferentes níveis sociais. Não há diferenciação de qualquer natureza, exceto pelo grau individual de talento que requer treinamento personalizado, naturalmente, mas isso não chega a refletir na unidade do grupo que inclui, ainda, alunos selecionados da APAE.
Acompanho o dia a dia da Plié já que, além de vizinho, sou apreciador e incentivador da inclusão pelo desenvolvimento do talento inato e por seu encaminhamento para o cenário artístico mundial.
Quem compareceu ao recital de 1º de novembro mergulhou na cultura grega (tema central do espetáculo) e pode confirmar que Tatiana Maiara de Oliveira, Diretora da Escola, sabe onde pisa, com ou sem sapatilhas e não necessariamente na pontinha dos pés. Ao contrário, seus passos são firmes apesar de leves, decididos e vigilantes para que seu projeto não seja esmagado por outros pés dos turrões e preconceituosos insuflados pela inveja e pela ignorância.
E é na pontinha dos pés mas igualmente decidido que estarei amanhã no anexo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, representando a Prefeitura Municipal de Canavieiras, para apresentar à Primeira Bailarina do Corpo de Baile do majestoso teatro, Márcia Jaqueline, o convite oficial para que nos visite e conheça de perto a Escola de Ballet Plié, destacando o Projeto Allegro e os talentos que já são fortes candidatos às disputadas companhias de dança do mundo. Sem desmerecer os demais, considero a um passo da glória os bailarinos: Carina César Battisti, Isabela Santos de Paula e Damião Figueiredo, além de novos emergentes, desde que não desçam de sua humildade, faltando-lhes apenas a oportunidade sobre a qual escrevi no início deste texto, sendo imprescindível o apoio da família e da sociedade que não devem atribuir ao preconceito maior volume que o de suas próprias situações pessoais mal resolvidas. Afinal, sair do armário não é apenas soltar as plumas, como já o fizeram tantos machões casados com mulher de vagina e tudo. Sair do armário pode representar também abrir espaço para a insofismável realidade de que o verdadeiro diretor da vida é o talento. Bloqueá-lo é sufocá-lo, é matar lentamente, asfixiando o jovem pela intolerância e pela incompreensão.
Talento não tem sexo, nem modelo, nem padrão. Basta olhar para os pés dos bailarinos mais dedicados e talentosos para ver as marcas do esforço que supera a dor, uma dor que, diga-se de passagem, é bem menor que a dor causada pelos laivos candentes do ultraje, do preconceito e do radicalismo religioso.
Sim. Canavieiras tem Ballet. Itabuna tem Ballet e 3 representantes no Bolshoi. Em todo lugar há e sempre haverá Ballet e pessoas como a Tati calçando as sapatilhas em pés nus e fortes. A despeito das cabeças duras.
O autor Fernando Volpi é secretário municipal de Turisnmo de Canavieiras, no sul da Bahia.